sábado, 8 de dezembro de 2012

Chuva dourada de outono

Hoje recebi um sinal. Saía de casa nervosa a pensar na minha apresentação oral de Italiano quando um evento mágico ocorreu: na rádio, uma das minhas músicas favoritas começou a tocar e, no mesmo instante, um vento forte fez com que as folhas secas, douradas das árvores de uma rua de Coimbra começassem a voar por toda a parte. Era a chuva dourada! Sorri. São essas pequenas magias do dia-a-dia que fazem-me feliz, fazem-me sonhar e acreditar em forças superiores a mover meu mundo. Estou às portas dos vinte e três anos. Quando lembro-me de como eu era, quase não acredito em onde estou. E não falo de um estar geográfico. É onde estou cá dentro de mim. Mil vezes meu caminho mudei. Todas as vezes que me apeteceu, escolhi a estrada da bifurcação que dizia perigo. Algumas vezes me machuquei. Em outras, descobri que a placa não passava de uma galhofa. Mas em todas as vezes que escolhi um caminho, fui feliz por escolher o meu caminho. Dizem que cada escolha é uma renúncia. Digo que cada escolha é uma denúncia. Nossas escolhas vão, aos poucos, denunciando nossos desejos, nossos medos, nossos desconsertos. Estou exactamente onde eu queria estar. Se um pequeno trecho da estrada fosse diferente, cá eu não estaria. É, são chegados os vinte e três anos. Tempo pouco. Tempo muito. Tempo suficiente para descobrir que é melhor saborear o mundo do que comê-lo todo de uma vez só. Mas, às vezes, uma grande mordida é uma delícia! Nunca testemunhei um assassinato, mas vi alguns corações serem enterrados vivos. Também já enterrei o meu. Mas seu pulsar era tão forte que a terra sobre si não o pode conter. Sinto gotículas geladas em mim. É chegada chuva. Tempo frio. Melhor assim. Quanto mais gela lá fora, mais quente fica cá dentro. O outono e suas magias. Passo na Oito de Maio e um casal corre, dança e pula ao som de um senhor que toca. Sorri.Do outro lado do Mondêgo, às suas margens, um casal de idosos passeia e conversa de mãos dadas. Tão lindos! Dias de outono são sempre tão mágicos! Hoje recebi mil sinais. De agora em diante, contarei meus anos pelos outonos.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Dia e noite

Dia e noite. Somos dia e noite, meu antigo delírio. Teus olhos carregam a cor dos dias claros de sol. Tu és sol. Eu sou a noite. Sou o anoitecer. Em meus olhos só podes ver o escuro de uma noite tempestuosa. Sou tempestade. Só sei ser tempestade. Tua calma diurna me desconcerta. Desalinha-me. Enlouquece-me. És sol, meu bem. És sol. E és capaz de iluminar o mais apagado dos corações. Mas não quero que a tua luz acabe com o meu enoitecer. Se eu não mais noite for, dia por certo não serei. Que serei então? Uma tarde? Ou madrugada? Não posso, não quero. Não podes amar-me noite, compreendo. Só nasço quando tu já morres. E tu ressurges quando tenho que desaparecer. Mas sejamos justos, meu sol. Jamais me teria querido se eu fosse dia como tu és. O Sol só desejou a Lua porque não a poderia possuir. Nem tu, nem outro qualquer. Noites não podem ser possuídas, não aceitam ser postas em aquários. Noites não são peças decorativas de uma estante. Noites são amantes da Saudade. Noites são fragmentos de Sonhos Antigos dispersos, perdidos, encontrados, desalinhados. Noite é tudo o que não és, belo dia. Noite não tem medo como o dia tem da escuridão da noite. Tu fizeste-te sol por medo do escuro. Fiz-me lua para seguir mesmo sem ver o caminho onde piso. Não tenho medo. Não mais. Depois que o dia se foi voltei a ter paz.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Coisas de fora da tribo

Mar. Maldito mar! O mar mentiu pra índia. Índia devia era ter sabido que tanto azul assim de verdade é que não devia de ser. Índia acreditou em palavra de homem branco e índia nunca acreditava em palavra de homem branco. Índia sentiu uma coisa morrer dentro de si. Índia sabia que muito e por demais bem queria homem branco mesmo querendo fazer guerra com homem branco. Índia quebrara flecha da paz com homem branco. E índia pensou em como a gente começa a aceitar até flecha no peito se flecha no peito fizer coração parar de doer. A gente brinca de faz-de-conta-que-é-verdade e acaba por acreditar em palavra de homem branco. E homem branco pensa que a gente sabe que é brincadeira quando fala de amor. Mas homem branco não sabe que, na minha tribo, bem querer nunca que é brincadeira não. Só porque índia anda perdida da tribo, homem branco pensa que índia perdeu toda noção. Índia só se perde quando homem branco vai embora sem dizer porque foi embora. Mas índia vai aprendendo que em palavra de homem branco não se confia. Homem branco não faz por mal. Homem branco acha que índia nada sente, que índia é diferente, que índia não é gente. Mas índia espera um dia ver homem branco chorar e muito, igual índia chora agora. Índia promete a si mesma matar pra sempre o querer-bem-quem-não-lhe-quer-bem. Índia promete.

sábado, 13 de outubro de 2012

Das ascensões e declínios das paixões (parte 1)

Voltou os olhos para o além-mar. Abandonou. Abandonou-se. Ainda perguntava-se se de fato voltara. E, enganando-se, dizia que sim. Quem foge da liberdade? Talvez quem fuja sinta-se livre para fugir. Em terra de certezas, permanecia uma interrogação. Quis correr para sentir o vento no rosto tal como antes sentia. Não correu muito. Cansou. Parou. Sentou-se no chão. Viu as horas. As horas. Malditas horas! Corriam demais. Demoravam demais. Horas e seus ais… Chorou. Lembrou das palavras da avó que sempre dizia que as lágrimas limpam a alma. Pensava ter banalizado seu choro. Por tanta coisa boba já deixara-se escorrer! Mas quem , afinal, determina o por quê se é justo chorar? Viu o sol querer desaparecer no horizonte. “Meu sol”, sussurrou ao vento . E esperou que seu sussurro fosse pelo vento entregue ao seu verdadeiro dono. Lembrou do velho caderno. O velho caderno foi esquecido. Não. Foi deixado. O caderno esperaria por um leitor na última gaveta da cómoda do corredor. Aquela que ninguém nunca abre. A gaveta aonde guardava-se fotos antigas, velhitas e já danificadas. Alguns trabalhos de tricô já manchados pelo tempo. Um sapatinho de bebé azul e sem par. Folhas de outonos passados. As folhas do seu caderno eram do outono passado. Outono. Pensara ter morrido junto com o outono. Não morreu. Talvez a vida não seja assim tão frágil. A morte pareceu-lhe muito mais delicada. Fugiu. Foi pelo medo do declínio que fugiu. Agora sabia. Cansou-se de estar sentada. Poderia deitar-se no gramado. Ver o céu. Contar estrelas. Não. Levantou-se. “Está feito”. E o vento parou.

Canto de esquecimento

Tu deixaste-me inventar uma nova ilusão. O mar em mim era tão revoltoso que quando encontrei as águas calmas nos olhos de um novo sol, não pude resistir. E o mar em mim não acalmou-se. As novas caravelas que passaram a atravessá-lo agitam-no tanto ou mais do que as antigas. Mas este canto não será erigido ao meu sol. Não. Este canto é de esquecimento. Quero que esqueçamos tudo o que não deveria ser esquecido. E que rememoremos, meu bem, as memórias esquecidas, as páginas apagadas. E o que nunca existiu. E o que erigimos ao nosso redor. E o que inventamos tão dentro de nós que até parece de verdade. E a minha antiga ilusão abandonar-me-á. Oh, meu céu! Por que te enublaste? As tardes foram ficando cada vez mais curtas até que, por fim, nos tornamos noite sem fim.E até as nossas tortuosidades perderam a importância que em tempos posteriores tiveram. Tão triste! Quero escrever uma nova história. Nosso enredo chegou ao final. A minha espera foi desleal conosco. Tu já nem me olhas... Hoje meu canto é de esquecimento. Perdoa-me, meu vento primaveril. O outono espera-me. E pequenos fios de ouro brincam ao meu redor.

sábado, 15 de setembro de 2012

Livro esquecido

Éramos uma narração sem enredo. Meros personagens sem papel. Éramos o lapso d'algum autor sem inspiração. Rascunhos fragmentários duma imaginação obsoleta. E vi do outro lado do caderno, na outra página, os olhos teus perdidos nos meus. E quis-te. E por querer-te, inventei as partes não escritas. Não sei se nosso autor de fato quis que fôssemos mais do que personagens dispersos. Sei que juntos criamos e recriamos páginas de mundos imaginários. Juntos demos ao nosso autor um final. Final? Quem o escreve, afinal? Escreveste-me mais do que uma vez. Escrevi tuas linhas também. Escrevemo-nos sempre que pensamos que já não existimos. Escrevemo-nos sempre que erigimos muros em nosso entorno. Escrevo amor e aventura. Escreves paciência e acolhimento. Escrevi um mar entre nós. Escreveste o medo do meu afeto. Algumas vezes escrevemos até personagens secundários. Mas sempre escrevo que não esqueço-te. E sempre escrevo-te para que não esqueça-me. Sempre antagonizamo-nos Sempre somos os nossos protagonistas. Para sempre presos aos nossos papéis neste livro dum autor desconhecido.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Monólogo da janela

Estive a procurar a constelação do teu nascimento. Almas partidas, perdidas, onde moram? Eu não conheço as estrelas. Mas contemplo-nas. E elas pousam a minha janela sempre que o Sol se despede. Vigiam meu sono. Testemunham as minhas insônias. Vejo o centauro correr no céu. Sempre mais longe lança suas flechas. E sempre mais longe as anseia lançar. E quanto mais corre, mais sua amada constelação foge de si. E tu foges de mim. E o instinto do lado equino age sempre pela impulsão. E caminha errante. Não, nunca caminha. Corre, pois tem pressa e medo de perder tempo. Tempo é existência, é vida. E o que é humano no centauro, quer sempre saber o que não sabe e o que sabe duvida que saiba só para que os que sábios são ensinem novamente. Às vezes o centauro para quando vê bifurcações. E trifurcações. E escolhe um caminho. E erra muitas vezes e perde-se na floresta. E desespera-se. Até que vê uma linda e frondosa árvore. E uma pedra engraçada. E um bichinho desconhecido. E sente a chuva cair devagarinho. E ouve as aves que gorjeiam. E pensa que se perder é talvez a única forma de se achar. E que digam que sua alma é perdida! Que mal há? Minh'alma é também partida. Somos dois? Somos um? Confundo-me agora. Antes que pudesse tua constelação encontrar, o céu enublou-se com nuvens avermelhadas. Nuvens vermelhas do que nosso fado. Não esse fado que ouço agora. O outro fado. Aquele fado que toca sempre quando desapaixono-me por ti. E que não termina sem que antes esteja eu mais uma vez perdida em tua constelação. Perdida nesta floresta misteriosa, fria, silente e ígnea que é o querer-te. E que traz-me à janela. E faz-me perguntar aos céus quanto tempo ainda tenho. E se nossos tempos podem juntos caminhar. E mais uma vez vejo que o sono começa a falar. E o ar gélido lembra-me que são horas de fechar a janela. Minha janela que de tanto o teu nome ouvir procura comigo tua constelação.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

À lápis

Penso que nunca contei. Mas a verdade é que escrevo a minha história sempre à lápis. Não consigo confiar na caneta. Ela parece-me tão definitiva, tão imutável! E quero que a minha história seja como um rio. Sempre águas diferentes. Outras águas. Entretanto não penses, meu mais querido entre todos os outros e, ainda assim, inomenável senhor, que a minha história escrevo à lápis para mais tarde apagar supostos erros e desvirtuações. Não. Os erros eu não apago. Antes, risco-nos com meu lápis. Faço tal coisa a fim de não tornar a lê-los constantemente e, com isso, perder o foco, deixar de lado o tanto que ainda tenho a escrever sobre a minha história. E não apago-nos pois não quero iludir-me de que os erros não ocorreram. Quero rememorar que erro sim. Sempre. Erras tu também, não é verdade? E sabes, meu mui estimado senhor, o que gosto em especial? Gosto quando partes da tua história misturam-se a minha. Gosto quando histórias tuas são minhas. Gosto quando histórias minhas são tuas. E bem sabemos, também escreves histórias. E o fazes tão bem! As tuas histórias são as mais perfeitas histórias que já li, senti, vivi. Hão-de dizer que foi o amor quem agora falou. E tu, sempre tão descrente, hás-de sugerir que tudo não passa de encantamento. Insto-te apenas, meu bem, que leias todas as minhas histórias. Se assim fizeres, saberás que engana-te. Não notaste que estás em todas as minhas orações? Carrego tanto de ti em mim! Ficção, vida real, sempre presente. Preciso despedir-me. O lápis apressa-me. Quer continuar a correr e correr sobre o papel. Sempre travesso. Sempre instintivo. Sempre suave. Mas antes, peço-te: escreves comigo um dia? Talvez o final da história. Talvez o começo. À lápis.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A conversa notívaga

Quem dorme? Eu não durmo. Não consigo. E já nem tento. Tu dormes? Sabe aquela conversa que nós nunca tivemos? Ela está aqui. Viva, extensa, eterna. É, é ela. Há quanto tempo não conversamos? Não,não falo dessas frivolidades que dizemos um ao outro e fingimo-nos satisfeitos. Estou a falar de uma conversa de verdade. De falar e falar e expor o que temos dentro do coração. Será que podemos conversar agora? É que eu preciso mesmo falar. Preciso que compreendas o que eu digo. Podes, por favor, prestar atenção em mim? É que faltava-me coragem. Estive pensando em nós. Nas nossas conversas antigas. Falávamos sobre tudo. Sinto tanto a falta disso! Não, mentira. Eu falava sobre tudo. Acho que obriguei-te a gostar de mim. A culpa é toda minha. E fui eu também quem fez que deixasses de desejar-me. Eu sei que errei primeiro. Nada faz sentido. Acho que é o sono. Mas tenho medo de pegar no sono. Vou perder a coragem de falar. Será que amanhã vais me escutar? Falta pouco para amanhecer. O dia quer clarear. Minhas pálpebras pesam. Não posso dormir. Não quero que o amanhã se transforme em hoje. Lembras da nossa primeira conversa? Acho que não. Eu lembro. Eu a planejei. Eu queria-te tanto e tão bem! Será que amanhã ainda vou gostar de ti? Estou a perder as forças. O sono está a vencer-me. Mais uma vez adio nossa conversa. E nossa vida vai ficando para um depois que nunca há-de existir. Ficarei cá só mais alguns minutos. Prometo voltar logo para a cama. Nossa cama fria. Dorme. Eu durmo. Não sonhamos. Os sonhos, estes também ficam para depois. Quem dorme? Tu dormes belo e sereno. Meu anjo intocável. Conversamos amanhã.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Um violino em Madrid

Cá estou sentada à escadaria da Catedral de Nuestra Senhora da la Almudena. Um homem toca violino. Perco-me. Sempre perco-me. Em lugares, em palavras, em pessoas. Perco-me em olhares e em silêncios. E em violinos.Cá estive no sábado. Lembro-me de estar triste e pesada e de sair capaz de voar novamente. Gosto do som do violino. Gosto do som das moeda serem depositadas na caixa do violino. Gosto de ver toda essa vida ao meu redor. Casais apaixonados beijam-se, tocam-se. Pais afetuosos conversam e brincam com seus filhos. Amigos olham-se nos olhos enquanto trocam ideias. Pessoas vão. Outras pessoas vem. O violino não se cala. Nem a vida. E cá continuo a esperar. Não sei o quê. Não sei porquê. Não quero ir. O violino analgesia-me. E o tango que agora soa faz-me viajar. Imagino um homem alto e de pele morena aproximar-se de mim e, com um simples gesto, convidar-me para dançar. E num instante, sinto-me solta nas constelações. E agora saem do violino as notas de "Con te partiro". Mas eu parti sozinha. Sempre sozinha. Sempre sozinha? De onde vem esse medo? Do que tanto tenho medo? O que dói eu não sei. Só sei que dói incessantemente. Mesmo acompanhada, estou sempre só. E afinal, quem nunca abandonou por medo de abandono? Partir. É, faz sentido. Quem não parte-se ao partir? São tantas partidas que acumulo em vinte e dois anos que chego a perguntar-me: o que resta de mim? Que parte minha pertence-me? Um pai pega sua filha e carrega-no colo. Que saudades dos tempos em que eu tinha direito a receber colo! Saudades de sentir-me abrigada e protegida pelo simples fato de ter braços ao redor. Agora o violino incessante acaba de vez comigo. No ar propaga-se uma canção medieval que lembra-me infância, desejos secretos e amores perdidos. Amor perdido. Amor nunca encontrado. A hora da partida está a aproximar-se. Eu não quero partir. E se eu tocasse violino? Saberia falar o que sinto através de notas já que com palavras parece que nunca irei sabê-lo? Passa um casal. Ela sorri e fixa seu olhar nele. A mão, ao lado dele, parece inquieta. Ele sorri, diz algo e abaixa os olhos. E continuam a caminhar lado a lado. Nenhum toque. Nenhuma aproximação. A cena contrasta com a música romântica. A cena contrasta com a Espanha romântica qu conheci nos últimos dias. Parto. Parto-me novamente. E deixo parte parte de mim com estes quatro amigos que sorriem e abraçam-se livres de preconceitos bobos. E outra parte com este violino de Madrid.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Fim de Primavera

E foi-se a Primavera dos meus dias. Chegado é o Verão. Não é que não existam mais flores, mas estas foram ofuscadas pelo brilho do sol. E foram-se os versos da vida minha. Em prosa se fazem os meus dias. Poesia é para quem vive em eterna Primavera e eu, quem diria, decidi aceitar o fim da minha Primavera. O sol já não é ameno, queima a minha pele. Marcou-se o meu espírito. Os amores já não tem tons suaves de azuis, rosas, verdes. Agora eles tem a intensidade fugaz dos vermelhos, laranjas, amarelos... Acho que os amores de Verão nem sequer amores são. É tudo quente. Tão quente que ao fim do dia descubro-me cansada, acabada, nauseada. Mas é mesmo assim que se vive em Verão. Andei a pensar que deveria ter aproveitado mais minha Primavera. Ter visto as tulipas florescendo. Não consigo lembrar-me ao certo do dia em que o Verão chegou. Foi um processo lento, gradual e ao mesmo tempo, rápido demais. É tanto calor! E estes mergulhos em águas incertas só o abrandam por alguns poucos minutos. O corpo pede mais. O espírito pede paz. Entretanto, bem sei que a vida é sempre cíclica. A Primavera há-de retornar. Porém, antes é preciso que o Verão continue a queimar minha pele. E que as marcas façam-me lembrar dos dias de sol. E que venha o Outono e que a árvore dos meus dias dispa-se das suas folhas dos preconceitos, medos, receios e recuos. E dos desejos não realizados. E que venha também o Inverno com seu frio e suas solidões. E que o vazio dos seus dias cinzentos deixem-me receptiva ao inesperado. E então há-de vir a Primavera. E das sementes adormecidas brotarão flores. E com um pouco de sorte encontrarei quem as saiba colher.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Entranhas

Perco-me sempre neste transitar das tuas palavras não ditas. Tuas palavras malditas. Não sei ao certo que ler nestes teus olhos acusativos. Estes teus olhos que só fazem causar-me indigestões. E oferece-me tua alma. Diz-me teu preço. Que pensas? Acaso sou alguma espécie de diabo ou demónio? Não interessa-me o preço da tua alma. Se ela está à venda, não interessa-me. Tu não vieste das minhas entranhas, mas persiste em nelas morar. Somos sempre as mesmas palavras derramadas. As mesmas palavras entrevadas.As mesmas malditas palavras. Não cansaste-te disto? Tuas litanias ferem os meus ouvidos. Desconcertam-me. E vejo que viciei-me no amargor dos teus lábios. Só teu veneno cura-me da paz abominável. Viciamo-nos nesta brincadeira de fazer doer. Tens a arte da contemplação dos olhos meus rasos d'água. E eu, só eu sei como preferes que cravem-te o punhal. As tuas notas, todas as notas da tua canção de leviandade penetram-me desde antes dos nossos olhos se estranharem. Nossos olhos, que a despeito do espaço, insistem em se enterrarem. E as palavras esquecidas, existiriam de fato? As palavras,tais quais espadas afiadas, tornam as feridas cada vez mais profundas. E nossos grilhões? Quando os deixaremos? Sete vezes tentei fugir. Mas minhas entranhas ainda guardam o perfume do teu silêncio.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O mar e seus desejos

Resolvi dar as costas mar. Sua poesia já não me encantava.Abri meus olhos, parei de sonhar. Como as ondas eu regressara. Parti sem um rumo certo ter. Não escolhi qualquer destino. Fugia daquele que era o meu desatino. O vento forte guiou-me ao deserto. Através das areias quentes vaguei. Por entre dunas e rochedos andei. Mas minhas entranhas ainda recordavam do perfume que escondia-se sob teu olhar perverso. E será que fomos mais do que palavras derramadas? E a cada passo que dava, o vento apagava as minhas pegadas. E entardeceu. Entardecemos. E agora, o que restava-nos se nem o sol mais tínhamos? E o que eu lembrava-me eram pedaços do cheiro do mar. E acredite-me, a estas lembranças entrelaçavam-se fragmentos teus. E quanto mais longe eu sentia-me do oceano, mais alta era a sua canção. E toda aquela areia a minha volta a enlouquecer-me... E o mar tão longe! Tão perto! E a chuva eu esperava. E a chuva nunca chegava. E as vozes suplicavam-me pelo mar. E eu rendi-me. Fraquejei. Voltei. E entreguei-me ao mar. E dilui-me. E o mar tragou-me. E tu nem reparastes. E não existo mais. E eu existo, aliás. O mar sou eu e eu sou o mar.

sábado, 12 de maio de 2012

Às margens do tempo

Gelam-me as mãos e os pés. Gela a minha alma. E começa a aquecer o tempo. E nós, temos mais tempo? Não temos tempo. O nosso tempo acabou. O nosso tempo nunca foi.E não entendo esta minha mania de tocar no passado. De lamentar o passado. De respirar o passado. Para a eternidade será ele o meu mal resolvido assunto. E todas as outras histórias que tento tecer no meu tapete acabam por enlaçar-se nesta história antiga. Tempo. Qual tempo foi nosso tempo? É pena o nosso tempo não ser o mesmo tempo. És passado? És futuro? Presente não és. Isto sei. Será que nunca presente serás? E por vezes nossos diferentes tempos entrelaçam-se. E confundem-se. E perco-me. Mas meu destino são águas de um rio que flui para o mar. E meu presente, por ora, é a terra, esta terra. E o tempo? Qual tempo? Não sei que tempo é o nosso tempo. Só sei que foi teu fluir calmo e constante que avassalou-me. Todos os meus segredos, tuas correntes os levam. És presente. O nosso tempo é agora. Mas nosso tempo não demora. E o silêncio. Por que foi que desaprendemos a ouvir o som do nada? Teu silêncio é um tormento. Tua mudez desconcerta-me. Desalinha-me. E acalma-me. E o tempo? Muda o tempo. Este é nosso tempo? Chove. E permaneço às margens de ti.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Memórias imaginadas

Essa estória não é sobre você. E nem sobre eu. Essa estória é sobre nós dois. E é sobre nossas vidas imaginárias. É sobre o afeto que um dia logramos ter. Sobre as mentiras veranis. Essa estória é sobre estradas perdidas que se cruzam no entardecer das vontades. É a estória do medo. Era o medo o que nos unia. Medo de nada. Medo do nada. Medo de tudo de repente, ser nada. Medo das nossas invenções. Foi o medo o que nos separou. Não era preciso muito. Não era. Só era preciso o mundo.E o mundo era tão grande! E o mundo ficou muito pequeno. E fui imaginando outros mundos. Criando nomes e conceitos, frases e feitos, almas e pecados.E tu fostes também imaginando mil palavras e empregos destas. Inventastes sóis e luas, animais e plantas, florestas e mares. E inventou-me. Mas de repente, as tuas metades se espalharam pelo sofá e ao recolhê-las, percebi que não valiam uma única palavra do jardim morto. Pois tantos sonhos se perderam naquela estrada densa! E o medo aventureiro teimava em perseguir-nos. E a imagem do paraíso voltou a infernizar-nos. E novamente, fez-se entre nós um vazio completamente cheio de nada. E ao fecharmos nossos olhos ainda sentíamos o calor dos nossos abraços desfeitos. Sentíamos o calor que nunca existiu. E eu não pude salvar-te de ti. E tu não pudestes salvar-me de mim. E perdemo-nos. E o nosso livro ficou pela metade. Eu sou um livro. Não sou teu livro. Não quisestes escrever em mim a tua estória. Não sou um livro. Eu sou teu livro. Foi tu quem inventastes-me. Somos um livro de memórias imaginadas.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Humanidades

Pendurei minhas asas à janela e segui o som do vento.

terça-feira, 20 de março de 2012

A resposta

Porque as feridas ainda estão expostas. E toca nelas quem bem entender. E abstenho-me de ver. Não posso. Não quero. Mas não mais me absterei da fome de tempestade.
Perdoe-me se em tua jaula não entrei. Eu vi a armadilha. E eu dancei sobre ela. E ri. Não há venda em meus olhos. Pena que não reparastes! Poupei meu tempo. Poupei teu tempo. Não agradece-me?
Tão ingrato permanece! O tempo não muda-te. O tempo é uma ilusão. A mudança tua também o é.
E as vozes tornaram a falar. E pressagiei o silêncio. E veio a tempestade. Silêncio e vozes. Silêncio. E vozes.
Com o Corvo aprendi o "Nunca mais". E nunca mais me esquecerei desta lição. Só as paredes contemplarão minha loucura agora. E as palavras, entenda-nas quem puder. Entenda-nas se quiser. Mas é certo que não deixarei marca alguma amargar meu espírito.
Chama tua pele pelo meu nome? Perdoe-me, mas meu espírito só se saciará agora com aquele que diz "devora-me".
Porque as feridas ainda estão expostas. Mas toque nelas e irá se arrepender.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Dizem as vozes

E foi inesperadamente que a paz perdi. Eu procurava as palavras, mas estas fugiam-me. Busquei alívio em versos, poemas, prosas, sentenças... Em livros e mais livros escondi-me. Entretanto, em nenhum deles morava a minha paz.
E a vida fez-se fria e vazia. E o tom que nunca possuí,perdi-o. E o mundo não deixou de mover-se. A banda não parou. O Universo, em momento algum, se calou.
Então, as palavras perderam seus significados. Ficaram todos dispersos, suspensos no ar. A significância dos vocábulos partiu para um mundo essencial.
E para completar-se plenamente a inquietude interior minha, as palavras continuaram por aí, a circular libertas, travessas, a resvalar das montanhas e das línguas, a causar grande confusão pois, afinal, de que serve-me palavras que nada querem dizer?
E tudo no mundo perdeu o sentido. Virtudes e vícios, como distingui-los? E o bem? E o mal? Qual a diferença entre o útil e o fútil? O que é racional e o que desconhece completamente a razão?
Mas foi então que notei que o demônio em mim sorria ledamente e abençoava o caos. Foi assim que percebi que é só no desconcerto das ideias, na fragmentação das palavras e no completo desarranjo de sentimentos e significados que o meu mundo faz sentido. É na falência dos amores, nos conceitos desfeitos e nas imagens rarefeitas e incompreensíveis que minha mente trabalha e meus sentidos despertam.
E a paz? A paz? Quem disse que é paz o que hoje eu quero?