segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Coisas de fora da tribo

Mar. Maldito mar! O mar mentiu pra índia. Índia devia era ter sabido que tanto azul assim de verdade é que não devia de ser. Índia acreditou em palavra de homem branco e índia nunca acreditava em palavra de homem branco. Índia sentiu uma coisa morrer dentro de si. Índia sabia que muito e por demais bem queria homem branco mesmo querendo fazer guerra com homem branco. Índia quebrara flecha da paz com homem branco. E índia pensou em como a gente começa a aceitar até flecha no peito se flecha no peito fizer coração parar de doer. A gente brinca de faz-de-conta-que-é-verdade e acaba por acreditar em palavra de homem branco. E homem branco pensa que a gente sabe que é brincadeira quando fala de amor. Mas homem branco não sabe que, na minha tribo, bem querer nunca que é brincadeira não. Só porque índia anda perdida da tribo, homem branco pensa que índia perdeu toda noção. Índia só se perde quando homem branco vai embora sem dizer porque foi embora. Mas índia vai aprendendo que em palavra de homem branco não se confia. Homem branco não faz por mal. Homem branco acha que índia nada sente, que índia é diferente, que índia não é gente. Mas índia espera um dia ver homem branco chorar e muito, igual índia chora agora. Índia promete a si mesma matar pra sempre o querer-bem-quem-não-lhe-quer-bem. Índia promete.

sábado, 13 de outubro de 2012

Das ascensões e declínios das paixões (parte 1)

Voltou os olhos para o além-mar. Abandonou. Abandonou-se. Ainda perguntava-se se de fato voltara. E, enganando-se, dizia que sim. Quem foge da liberdade? Talvez quem fuja sinta-se livre para fugir. Em terra de certezas, permanecia uma interrogação. Quis correr para sentir o vento no rosto tal como antes sentia. Não correu muito. Cansou. Parou. Sentou-se no chão. Viu as horas. As horas. Malditas horas! Corriam demais. Demoravam demais. Horas e seus ais… Chorou. Lembrou das palavras da avó que sempre dizia que as lágrimas limpam a alma. Pensava ter banalizado seu choro. Por tanta coisa boba já deixara-se escorrer! Mas quem , afinal, determina o por quê se é justo chorar? Viu o sol querer desaparecer no horizonte. “Meu sol”, sussurrou ao vento . E esperou que seu sussurro fosse pelo vento entregue ao seu verdadeiro dono. Lembrou do velho caderno. O velho caderno foi esquecido. Não. Foi deixado. O caderno esperaria por um leitor na última gaveta da cómoda do corredor. Aquela que ninguém nunca abre. A gaveta aonde guardava-se fotos antigas, velhitas e já danificadas. Alguns trabalhos de tricô já manchados pelo tempo. Um sapatinho de bebé azul e sem par. Folhas de outonos passados. As folhas do seu caderno eram do outono passado. Outono. Pensara ter morrido junto com o outono. Não morreu. Talvez a vida não seja assim tão frágil. A morte pareceu-lhe muito mais delicada. Fugiu. Foi pelo medo do declínio que fugiu. Agora sabia. Cansou-se de estar sentada. Poderia deitar-se no gramado. Ver o céu. Contar estrelas. Não. Levantou-se. “Está feito”. E o vento parou.

Canto de esquecimento

Tu deixaste-me inventar uma nova ilusão. O mar em mim era tão revoltoso que quando encontrei as águas calmas nos olhos de um novo sol, não pude resistir. E o mar em mim não acalmou-se. As novas caravelas que passaram a atravessá-lo agitam-no tanto ou mais do que as antigas. Mas este canto não será erigido ao meu sol. Não. Este canto é de esquecimento. Quero que esqueçamos tudo o que não deveria ser esquecido. E que rememoremos, meu bem, as memórias esquecidas, as páginas apagadas. E o que nunca existiu. E o que erigimos ao nosso redor. E o que inventamos tão dentro de nós que até parece de verdade. E a minha antiga ilusão abandonar-me-á. Oh, meu céu! Por que te enublaste? As tardes foram ficando cada vez mais curtas até que, por fim, nos tornamos noite sem fim.E até as nossas tortuosidades perderam a importância que em tempos posteriores tiveram. Tão triste! Quero escrever uma nova história. Nosso enredo chegou ao final. A minha espera foi desleal conosco. Tu já nem me olhas... Hoje meu canto é de esquecimento. Perdoa-me, meu vento primaveril. O outono espera-me. E pequenos fios de ouro brincam ao meu redor.