sexta-feira, 22 de maio de 2015

Sobre tragédias e projeções

Quando o teu silêncio violenta-me, lembro-me daquela outra história que deveria estar enterrada. A tragédia foi a busca por uma narrativa que não era a nossa. Eu amei teus entremeios, amei teus dias feios. Amei-te quando o teu corpo era enseada e as minhas pernas eram o mar a te envolver. Eu, que sempre fui mais Odisseu, converti-me em Penélope para que pudesses acompanhar os meus passos. Agora, presa nessa história que não é a minha, sendo dublê dessa mulher que só existe na tua imaginação, passo de personagem à expectadora enquanto o teu silêncio narra o fim dessa tragicomédia. Outra adaptação é feita da exposição dos nossos velhos defeitos, mas a face exposta na tela não é a minha. Nossos erros de continuidade sempre tão risíveis continuam a contar sobre o tempo apagado das nossas memórias. Tecer e destecer. Tecer e destecer. O tear silencia e dá voz aos personagens que o filme nunca mostrou. Os fios se prendem aos meus dedos inábeis enquanto os créditos são exibidos na tela. Eu buscava uma história que merecesse ser contada, que precisasse ser narrada. Como nunca encontrei tal história, falo sobre essa que deveria ser esquecida.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Os pés

Meu corpo acordou confuso. Os pés devem fixar-se na terra? Os pés devem caminhar? Ando de um lado ao outro no quarto sem saber o que espero, sem entender o que quero, sem compreender porquê me desespero. Entre o tum e o outro tum do meu coração há um vago ou uma vaga. Não sei. Tanto mar aqui! Audrey, na parede, olha-me inquisitiva. As bailarinas sobre a escrivaninha deixaram de lado o seu bailado e agora acompanham o meu movimento de um lado ao outro do quarto. Movimento. Os astros neste mesmo momento se movimentam, mas não sei se a nosso favor. Acho que estão contra nós. Teus insensíveis gestos suaves me oprimem. Mas teus olhos não se fixam nos meus. Por que eles mentem tanto? Acho que a tua boca não conhece as inverdades do teu olhar. E eu, que queria tanto, ao menos uma vez, ter dançado contigo, fujo das mentiras dos teus olhos. Agora até a adaga de Sevilha fala. Não. Canta. Mas ao seu belo flamenco ignoro. Assim como as cortinas, ela só sabe seduzir à escuridão. Todos os livros da estante opinam sobre o que era aquele teu silêncio glacial. São tantas vozes que já nem escuto. Não importa. Agora só há o movimento. Teu movimento sobre o mar. Meu movimento sobre a terra. Eu, que por instantes fui Penélope, relembro que nasci Odisseu.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Selva morta

Algumas partes tuas eram partes minhas. Era o quase fim do mundo que passou por cima dos nossos corpos e nos devorou. Eram os desertos dos teus lábios quando a realidade era escondida. Era a minha pele misturada a tua sem que soubéssemos se éramos recomeço ou término de história. O punhal que estava ao alcance das nossas mãos, a oferta que recebemos dos deuses, foi levado pela última nuvem de corvos que passou. As nossas faces rasgadas perderam o azul melancólico do outono. Perdemos o chão. Só que nem tudo era ermo naquela história mentida aos inocentes cadernos entregues ao fogo. Não era tudo ermo. Ermas eram as tuas vontades, tuas metades, inexatidões de carácter. Ermos eram os meus medos, meus segredos, entremeios. Algumas partes minhas eram partes tuas. Era a indecisão entre o passado e o teu olhar de selva morta presente.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Poesia domesticada

O laranja cintilante em repouso sobre o mar lembra a tua tez iluminada pela geladeira aberta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Saída de emergência

Acostumada ao desconforto do teu braço sob a minha nuca, o sono agora custa a chegar. Tento encontrá-lo na memória do teu cheiro, das tuas mãos invasoras e até do teu ronco. Mas as horas voam numa lentidão angustiante. O meu corpo confunde a ausência dos teus braços com doença e febreja. Talvez as nossas horas não tenham passado de lembranças fabricadas. Talvez as minhas pernas nunca tenham estado envoltas em teus quadris. Talvez tua língua nunca tenha se escondido entre as minhas coxas. E porque há sempre duas histórias nas minhas linhas traçadas_ uma que é narrada pelas palavras e outra, contada pelos silêncios_ o teu nome continua obscuro, escondido entre os meus lábios adormecidos. Eu, Madalena nunca arrependida, vejo nos teus turvos entremeios a analgesia para as minhas vontades espartilhadas. Acostumada ao teu corpo sobre o meu corpo sem quaisquer pudores católicos, não enxergo a saída de emergência.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Sobre tessituras e retalhos

E é chegada a manhã, e a agulha, que tão facilmente entrava em cada casa, escapou-me dos dedos. Perdoe a minha desatenção aos teus retalhos. Mas há muito de não dito nas tuas palavras tecidas sobre o papel. E já não ouço a voz do teu sangue desmaiado após um dia de agosto. Mas o teu nome bordado sobre a camisa ainda sangra. E teus olhos sempre serão este inacabado trabalho de Penélope. Quanto ao teu espírito, este continua a ser uma cidade despovoada, embora o corpo nunca o tenha sido. Não quero a tua tessitura a marcar a minha pele. Meu coração já esteve alinhavado ao teu. A minha bravura, hoje, entretanto, é desfazer este rude trabalho de costura. Já nenhum dedal empurra a agulha que cosia incansavelmente as nossas partes que nunca puderam formar um todo. A tesoura passeia pelo tecido e fragmenta todos os teus pequenos detalhes. A agulha e a linha agora repousam dentro da pequena caixa de madeira dos trabalhos costureiros.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Caso antishakespeariano

Esperança finda. História ainda. Reconto nossa história para encontrar sentido no eco das memórias falhadas. É que eu não te amava feito Julieta e tu nunca foste Romeu. Nenhum engano ou tragédia se interpôs a nós dois. Só frases interditas. Palavras mal ditas. Sílabas inauditas. Tentamos ser Antônio e Cleópatra, mas nos faltaram impérios, víboras, lascívia e romance. O fio que tecia a nossa história era o mar quando por nós atravessado. Agora é o mar que nos atravessa. E o fio não pode tecer lenço ou qualquer Iago, de modo que Otelo e Desdêmona passaram longe de nós. Nenhum grande ciúme envenenou nossas almas. Nenhum abstêmio juramento fizemos e, entre França e Navarra, nenhum trabalho de amor foi perdido. Só subjuntivamos nosso encontro. E se os olhos continuassem fechados? E se os lábios se encontrassem? Nem Hérmia ou Helena sou. Nem és tu Lisandro ou Demétrio. Nada de elfos ou uma noite tão longa de verão na nossa história. Entretanto, o outono fez das nossas vidas uma cidade sitiada. Longe de Verona, Alexandria e Atenas a história é finda. Mas as letras sobre o caderno cantam a esperança ainda.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Outono sem frutos

No nada que somos, a que todo representamos? Mil pedaços quebrantados trazem menor valia ao todo que era belo, etéreo? Que parte minha era tua? O que meus lábios roubaram dos teus? Hoje entrego a metade que a ninguém pertencia. Tenho medo do eco do silêncio que se fez. Mas continuo à espera do desafio do tempo. Os cacos do tempo também não me pertencem. E os fragmentos do amor que não teve forças para nascer foram abortados, desceram pelo ralo. O ralo. Todo o mal extirpado desce através do ralo. Pedaços meus, pedaços teus... Nosso sacrifício foi pesado em balança e considerado insuficiente. Não penso nos retalhos dos vestidos primaveris que agora só servem para cobrir a cama. Eu penso nas nossas almas retalhadas pela quimera. O peso do vazio que carrego é maior quando teus olhos pousam sobre o meu ventre. O ventre. O outono há-de passar sem o fruto do ventre. E o começo desta história fica adiado para outra estação.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Café e cigarros

Não compreendo o que mudou. Diga-me que parte nossa se inundou. É sempre mau tempo quando estás tão distante. Agora é tudo diferente. É tudo silente. A vida segue como um cigarro aceso ao lado de um ex-fumante. Como o convite para um café do ex-amante. Como o wisky na estante. A corda do teu violão partida. A minha carta nunca lida. Teu telefonema ignorado. Tua mensagem oculta no meu livro fechado. Nosso caso é o resultado de uma insónia coletiva dos deuses. Acaso haverá maior tentação do que a dúvida? Dúvida, dádiva, dívida: tantos erros! Mas contra vontades, perspectivas e diagnósticos nossa tragicomédia continua a ser escrita. O mar afogou-nos. Inundou-se o nosso lar. Muitas águas movem o nosso manuscrito de um lado ao outro. Mas, de repente, a corda do teu violão se parte e o meu livro se fecha. Tu lês minha carta. Eu atendo teu telefonema. E do cigarro aceso ao lado faz-se o convite para um café. E o frio se vai. A chuva se esmaece. E não entendo porque nossa história nunca muda. Somos vítimas do silêncio das pedras. Filhos do oceano que nos separa.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Entre frascos e bagagens

Nos meus lábios oclusões violentam os ouvidos teus. Coisas que só se vê quando os olhos se fecham. Olhos ateus. Os olhos são teus. A porta sempre se fecha no fim do dia. As feridas se abrem no fim da linha. Abrir e fechar. Fechar e abrir. Vivo em terra aonde até os fracos tem vez. Os fracos e seus frascos. Os frascos fechados. Meus frascos abertos. O pulsar já tão distante quanto a lua. A lua. Nua, desdobro-me. Redobro-me. Recordo-me. O corpo é agora pretérito mais-que-perfeito. A alma sempre fora o imperfeito. Abandono-me pela minha incapacidade em abraçar-te. A bagagem. A bagagem dobrou de volume. A bagagem tem mais vida que queixume. Fiz do meu abandono um reencontro. Reencontrei. Reconheci minha face no espelho. Para cada vírgula no meu caminho, imaginei um segredo cifrado. E todas as minhas esfinges não passavam de enganos interpretativos. Olhei meus olhos no espelho. Já não faz sempre mau tempo. Quantas tempestades tu roubaste do meu peito? Em tempo de recomeços, recomeço minha história da ponta ocre perdida no caderno escondido na mala cinzenta guardada debaixo da cama. Um dia tudo era precipício. No outro, tudo foi precipitação. Será que descobrimos um novo capítulo nos manuscritos do nosso autor? Em tempo de reencontros, reencontro uma parte perdida daquilo que hei-de ser. Deixo os frascos para os fracos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O nome

O nome gritado da lama. Loucura é ópio, incenso, pena e perfume. Transgridem meus olhos e perdem os céus. Os seus. Seu nome. Um nome é fome de sentido. Nome se rende abstracto. Nome anti-libertação. É medo de tocar os céus. Em transe reencontro a que fui quando não era. Em êxtase encontro o nome que era meu e desaprendi a dizer. Corro para lembrar das minhas asas. Fujo para ser encontrada pela outra face da imagem que perdi. Espelho. Projeto no outro o outro que sou, que fui, que queria ser. Todo amor é uma projecção. Toda imaginação é uma lembrança de uma coisa outra que era. É o nome lembrado e cuspido na lama.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Dos monges

Sub-amores olham através das janelas com cortinas entreabertas seu copo de veneno cotidiano passar. Venta. O chapéu que voa solto pelo ar conhece mais histórias sobre vontades entardecidas do que pensávamos. Mato-me mais uma vez para dar sentido à existência. Não aprendi nada no espelho das lamentações. Eiras e beiras continuam perdidas na gaveta da antiga escrivaninha. Não lembro onde começa a história. Línguas se apressam a falar do que não sabem. Uma moeda por teu silêncio! Uma moeda por teu silêncio! É pecado por a culpa no pecado. Não confio em quem me tenta roubar a liberdade. Fragmentos de vento contam suas memórias às janelas abertas. Não sei como se comportam as paisagens. Não suplico por folhas caídas. Cada vela apagada é um livro terminado. O cheiro do eco das manhãs continua a atrair olhares complacentes. Deixo que teu castigo seja a minha indulgência. O sino não fez das pedras mudas. Um corpo sem marcas é um espírito sem vida. Não há verdade em quem tem medo do fogo. Palavras frívolas são como mantras que fazem minha mente viajar para outros universos. Sete arranhões cicatrizados antes do vento apagar a última vela. Nada é tão cataclísmico depois de uma noite de sono. Bons sonhos! Que o santo ventre da terra te seja acolhedor!

sexta-feira, 22 de março de 2013

Sutiã na cabeça

Era terça-feira torta como toda terça-feira torta logo após segunda-feira insana. Acordei. Abri os olhos. Uma borboleta do tamanho de uma vaca estava entalada na minha janela. Abri os olhos. Ainda estava lá. A vil criatura olhava-me com seus enormes olhos famintos. Olhei a porta. Num pulo pus-me para fora da cama. Fugi do quarto. Corri para a cozinha a pensar que meu mal fosse talvez falta de café. Para meu espanto, um dragão chinês cozinhava e, muito educadamente, convidou-me para sentar e apreciar a nova receita de bananas flambadas com canela que criara. Apesar do susto, comi. A cara era muito boa e adoro tudo que leva canela. Depois de comer, calculei que um banho de água fria resolveria o meu caso. Ledo engano! No banheiro encontrei cinco anões azuis tocando rock com seus cavaquinhos."Ó, Zeus, esta casa está amaldiçoada", pensei. O jeito foi correr à rua para respirar ar puro. Péssima decisão! Em frente a minha casa ocorria uma parada de cachorros falantes com plumas de ganso a sair-lhes pelas orelhas. "Só tem uma solução", pensei. "Vou à delegacia. Lá algo devem fazer." Ideia ruim, ideia sem jeito! Encontrei policiais vestidos de Village People cantando fado, enquanto Leonardo da Vinci tatuava Monalisa na sua nádega esquerda. "Não há jeito. Preciso de um médico!". Tomei um táxi para o hospital. Um macaco cor-de-rosa guiava o carro, mas o que é uma cerveja pra quem já está completamente ébrio? "Um médico, por favor! Um médico!", gritei hospital adentro. Caetano Veloso atendeu-me com um uniforme de enfermeira dos anos 50 e confesso que achei que lhe caiu até muito bem. "Preciso de um psiquiatra", disse-lhe. Em poucos minutos estava eu diante de uma orquídea com um lindo vestido amarelo e sorriso branco que perguntava-me: "Que houve, minha querida?" "Acho que enlouqueci. Estou a ver coisas que não podem existir." "E quem diz o que pode ou não existir? Isto e caso de poesia, minha filha." Voltei para casa querendo minha mãe, minha cama e fazer manha. Que dia mais insano! Que terça mais maluca! Mas que é que é insano, afinal? Deixa o caos reinar que isto é casa de escritora.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Precipício

Estes silêncios insondáveis são teu vício. Meu precipício. Penduro minhas asas à janela e caminho para fora do paraíso. Tuas palavras são só resquícios de mil conversas inventadas. Conversas entardecidas. A lua minguou, meu bem. Os cigarros voltaram para a mesa e esperança retornou à gaveta. A memória da pele tem sangue nas mãos. A memória dos sentidos repeliu as tuas palavras. A memória dos encontros esqueceu-se do teu calor. “Pula”, dizem as vozes e permaneço com meus pés presos ao chão. Ó, céus, por que reinvento-te toda vez que morre um pedaço meu? Nunca fomos mais do que histórias antigas recontadas. Rememorar-te é minha covardia cotidiana. A lua é só um arco no céu. Estou só. O silêncio comeu todos os meus afetos. Minhas páginas estão a apagar-se. Reinventemos o dia já que a noite escura nunca finda. Minhas palavras derramadas combinam com teu signo indecifrável. A minha fonte é seca. Minhas raízes estão fracas. Minhas folhas estão a cair. O precipício grita o meu nome. Falta tanto tempo para a lua cheia! Meu tronco já não pode resistir. Estou tão cansada de coleccionar descaminhos! Só as palavras fazem meu coração palpitar. Amo-te porque és a minha mais bela reinvenção. Meu copo de veneno. A lua guia meus passos ao precipício. E precipito-me em teu silêncio inventado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Outros pecados

Recomeça a vida toda vez que piscam os olhos. E em cada recomeço faz-se céus e terra. O dia durou mais do que deveria. Os meus dias são longos quando tão separados dos teus. Os teus. Ateus dançam agora no nosso esquecido Jardim do Éden. Quiseste provar as delícias do fruto proibido nos meus lábios. Meu pecado teve gosto de desconhecimento. Depois de pecar perdemos o dom de enxergar. Não reconheço mais teu rosto. Vejo um, vejo dez, vejo cem. Todos os rostos que vejo são iguais. Sinto falta de um tempo onde eu cria ser teu rosto diferente de todos os outros rostos. Abel ou Caim? Não sei. Nunca soube. O dilúvio apagou teu perfume das minhas narinas. Castigo para amante de nefilins. As águas apagaram minha existência. Sempre estrangeira em terra distante. Não pertenço à nenhuma das doze tribos. Na tua casa não entrei porque meus muitos deuses ofendem-te. Queres-me. Persegue-me. Não entendo. Não entendo! A carne que beijas à noite, quando dia, queimas em praça pública. Um filho do teu Deus salvou-me do apedrejamento, mas teu olhar continua a condenar-me. Teus olhos crucificam-me. Mesmo depois de por serapilheira, raspar minha cabeça e receber nome cristão, tu pensaste em mim como indigna de ti. “O cão volta ao seu vómito”. Recito teu Livro Sagrado e volto aos meus deuses que nunca abandonaram-me. Recomeça a vida toda vez que piscam os olhos. Que haja a luz!