domingo, 28 de dezembro de 2014

Selva morta

Algumas partes tuas eram partes minhas. Era o quase fim do mundo que passou por cima dos nossos corpos e nos devorou. Eram os desertos dos teus lábios quando a realidade era escondida. Era a minha pele misturada a tua sem que soubéssemos se éramos recomeço ou término de história. O punhal que estava ao alcance das nossas mãos, a oferta que recebemos dos deuses, foi levado pela última nuvem de corvos que passou. As nossas faces rasgadas perderam o azul melancólico do outono. Perdemos o chão. Só que nem tudo era ermo naquela história mentida aos inocentes cadernos entregues ao fogo. Não era tudo ermo. Ermas eram as tuas vontades, tuas metades, inexatidões de carácter. Ermos eram os meus medos, meus segredos, entremeios. Algumas partes minhas eram partes tuas. Era a indecisão entre o passado e o teu olhar de selva morta presente.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Poesia domesticada

O laranja cintilante em repouso sobre o mar lembra a tua tez iluminada pela geladeira aberta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Saída de emergência

Acostumada ao desconforto do teu braço sob a minha nuca, o sono agora custa a chegar. Tento encontrá-lo na memória do teu cheiro, das tuas mãos invasoras e até do teu ronco. Mas as horas voam numa lentidão angustiante. O meu corpo confunde a ausência dos teus braços com doença e febreja. Talvez as nossas horas não tenham passado de lembranças fabricadas. Talvez as minhas pernas nunca tenham estado envoltas em teus quadris. Talvez tua língua nunca tenha se escondido entre as minhas coxas. E porque há sempre duas histórias nas minhas linhas traçadas_ uma que é narrada pelas palavras e outra, contada pelos silêncios_ o teu nome continua obscuro, escondido entre os meus lábios adormecidos. Eu, Madalena nunca arrependida, vejo nos teus turvos entremeios a analgesia para as minhas vontades espartilhadas. Acostumada ao teu corpo sobre o meu corpo sem quaisquer pudores católicos, não enxergo a saída de emergência.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Sobre tessituras e retalhos

E é chegada a manhã, e a agulha, que tão facilmente entrava em cada casa, escapou-me dos dedos. Perdoe a minha desatenção aos teus retalhos. Mas há muito de não dito nas tuas palavras tecidas sobre o papel. E já não ouço a voz do teu sangue desmaiado após um dia de agosto. Mas o teu nome bordado sobre a camisa ainda sangra. E teus olhos sempre serão este inacabado trabalho de Penélope. Quanto ao teu espírito, este continua a ser uma cidade despovoada, embora o corpo nunca o tenha sido. Não quero a tua tessitura a marcar a minha pele. Meu coração já esteve alinhavado ao teu. A minha bravura, hoje, entretanto, é desfazer este rude trabalho de costura. Já nenhum dedal empurra a agulha que cosia incansavelmente as nossas partes que nunca puderam formar um todo. A tesoura passeia pelo tecido e fragmenta todos os teus pequenos detalhes. A agulha e a linha agora repousam dentro da pequena caixa de madeira dos trabalhos costureiros.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Caso antishakespeariano

Esperança finda. História ainda. Reconto nossa história para encontrar sentido no eco das memórias falhadas. É que eu não te amava feito Julieta e tu nunca foste Romeu. Nenhum engano ou tragédia se interpôs a nós dois. Só frases interditas. Palavras mal ditas. Sílabas inauditas. Tentamos ser Antônio e Cleópatra, mas nos faltaram impérios, víboras, lascívia e romance. O fio que tecia a nossa história era o mar quando por nós atravessado. Agora é o mar que nos atravessa. E o fio não pode tecer lenço ou qualquer Iago, de modo que Otelo e Desdêmona passaram longe de nós. Nenhum grande ciúme envenenou nossas almas. Nenhum abstêmio juramento fizemos e, entre França e Navarra, nenhum trabalho de amor foi perdido. Só subjuntivamos nosso encontro. E se os olhos continuassem fechados? E se os lábios se encontrassem? Nem Hérmia ou Helena sou. Nem és tu Lisandro ou Demétrio. Nada de elfos ou uma noite tão longa de verão na nossa história. Entretanto, o outono fez das nossas vidas uma cidade sitiada. Longe de Verona, Alexandria e Atenas a história é finda. Mas as letras sobre o caderno cantam a esperança ainda.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Outono sem frutos

No nada que somos, a que todo representamos? Mil pedaços quebrantados trazem menor valia ao todo que era belo, etéreo? Que parte minha era tua? O que meus lábios roubaram dos teus? Hoje entrego a metade que a ninguém pertencia. Tenho medo do eco do silêncio que se fez. Mas continuo à espera do desafio do tempo. Os cacos do tempo também não me pertencem. E os fragmentos do amor que não teve forças para nascer foram abortados, desceram pelo ralo. O ralo. Todo o mal extirpado desce através do ralo. Pedaços meus, pedaços teus... Nosso sacrifício foi pesado em balança e considerado insuficiente. Não penso nos retalhos dos vestidos primaveris que agora só servem para cobrir a cama. Eu penso nas nossas almas retalhadas pela quimera. O peso do vazio que carrego é maior quando teus olhos pousam sobre o meu ventre. O ventre. O outono há-de passar sem o fruto do ventre. E o começo desta história fica adiado para outra estação.