domingo, 3 de abril de 2011

As histórias por trás das letras





Os livros estão carregados de histórias. Não, não falo do óbvio. Não me refiro às letras impressas, ao que foi dito pelo escritor. Não falo dos livros com páginas ainda coladas e cheiro de papel novo. Antes, refiro-me áqueles livros que já não são virgens, livros que foram lidos e relidos, ou que foram, por qualquer razão, ignorados em uma estante. Falo do livro que foi companhia em uma viagem, que foi analgesia para um mal do coração.Falo do livro que começou uma guerra ou, antes, que simbolizou um tratado de paz. Falo do livro que hoje tem as páginas amareladas, meio soltas. Falo do livro com cheiro de mofo, do livro que abre sozinho em certas páginas.Falo do livro que dormiu debaixo de um travesseiro, que foi escondido no fundo de uma gaveta. Falo dos livros que ganharam alma.
Tenho uma paixão nada secreta por tudo que é antigo: roupas, cabelos, móveis, línguas, costumes, fotografias e, é claro, livros. Adoro livros antigos!
Essa minha paixão pelo velho (sim, digo velho e não antigo livre de qualquer preconceito, uma vez que acho delicioso o som produzido por este vocábulo) leva-me com frequência a um lugar que chamo de pequeno paraíso: o sebo.
Nos sebos encontro muito mais do que simples livros. Encontro pedacinhos de história que parecem estar a esperar por uma alma gentil para que possam se libertar no plano da imaginação.
Uma excelente forma de um livro contar histórias é através de sua folha de rosto. Quem nunca deixou ali uma dedicatória, uma citação, um verso ou uma simples e misteriosa assinatura?
Dia desses, ao procurar loucamente por "Ressurreição", de Machado de Assis, topei comoutro livro que também iria precisar: "Os Lusíadas" de Camões. Mas este não era qualquer "Os Lusíadas". O livro que encontrei data de 1924! O livro estava caindo aos pedaços e, embora houvessem exemplares em melhores condições, foi este que decidi que merecia um novo lar. Minha habilidosa mãe logo deu um jeito nele que agora tem um aspecto muito melhor. O mais interessante, entretanto, ainda está por vir. Dentro do livro havia um bilhete que revela ter sido, o livro, um presente. O bilhete diz:

"Nenê,

Afim de bem conhecer o suave e riquissimo idioma que falamos, em que ha, para expressao do mais doce e nobre sentimento, a palavra saudade, inexistente em qualquer outra lingua com o mesmo vigor sentimental e intellectivo, ninguem póde deixar de haver perlustrado as paginas maravilhosas dos "Lusíadas", poema que é ao mesmo tempo um monumento philologico, poetico e racista.
Assim, para que V. se integre com os prodigiosos recursos vocabulares e syntacticos do vernaculo, dou-lhe este livro, que, de par com os conhecimentos que lhe facultará, ha de ter o condão de me fazer sempre lembrado por alguém que maneje com perfeição o idioma
"...em que da voz materna ouvi _ Meu filho!
e em que Camões chorou, no exílio amargo
o genio sem ventura e o amôr sem brilho!"
Oxalá lhe possa este volume servir, no estudo diuturno de moça intelligente e amante das boas letras, para consecução de uma solida cultura literaria da Lingua Portugueza.

Rio, 22 de outubro de 1936"
(grafia da carta foi mantida)

Após ler o bilhete, comecei a pensar na "moça intelligente e amante das boas letras" que fora Nenê e comecei a perguntar-me se não seria ela parecida comigo: uma estudante da Língua Portuguesa, uma apaixonada por Literatura. E quem será que lhe deu o livro? Um amigo? Um professor? Um apaixonado? Com certeza foi alguém que não queria ser esquecido, como deixa claro quando diz que espera que o livro faça-o "sempre lembrado por alguém que maneje com perfeição o idioma". E por que ele cita "saudade" logo no início do bilhete? Exemplo citado ao acaso para falar da singularidade da língua? Ou há nessa inocente citação um recado para Nenê? Teria todo esse bilhete cheio de eloquência o objetivo de dizer: "Nenê, sinto saudades. Por favor, não esqueça de mim."?
Há não muito tempo atrás, desenterrei outro livro de um sebo que ainda hoje põe minha mente a flutuar. Coleciono Agatha Christie e, quase sempre compro um exemplar. No "A morte no Nilo", encontrei a seguinte inscrição:

"Para Sueli (apesar de não merecer um presente meu)do seu "amigo",
Matias"

(trancrito como no livro)

Eu, que nada romântica sou, comecei a inventar uma daquelas paixões avassaladoras, com direito à malas e roupas arremessadas da janela e beijos desesperados em plena avenida movimentada. Imaginei uma Sueli imatura e verborrágica e um Matias sincero e ressentido.. Vi Matias passar em frente à uma loja e ver o livro que viu Sueli cobiçar dias antes da discussão onde juraram nunca mais se verem. E o vi comprar o livro e escrever a dedicatória no balcão da padaria e, logo depois, depositá-lo na caixa de correio de Sueli. E imaginei Sueli encontrando e livro, abraçando-o bem forte e correndo para o seu quarto para chorar. E vi quando ela correu à casa de Matias e, pedindo perdão, jurou nunca mais chamá-lo de imbecil, mesmo sabendo que logo tornaria a fazer isso.
Devaneios à parte, quando um livro chega às minhas mãos, penso nas mãos que antes de mim o tocaram e imagino as interessantes histórias que se encontram por detrás da história que conta o autor. Histórias que foram perdidas, encontradas, encaixadas, desconectadas, combinadas e recombinadas, e faço minha parte deixando um pedaço meu em cada livro para que se entrelace às outras e a ele dê vida.