quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A POESIA LÍRICA ONTEM E HOJE

Ele foi poeta elegíaco da Roma de Júlio César. Ela era uma excelente sonetista do início do século XX. Dois mil anos os separam. Séculos de tendências filosóficas, estilos literários e valores morais e políticos. Por que, então, comparar Caio Valério Catulo e Florbela Espanca? Porque a leitura atenta das elegias de Catulo e dos sonetos de Florbela Espanca evidenciam a influência das matrizes clássicas latinas na poesia lírica ao longo dos anos. Além do gênero literário, encontramos também uma temática muito similar nos poetas destacados.
O projeto abordará brevemente a biografia de Catulo e Florbela Espanca. Em sequência, apresentará uma análise objetivando justificar a escolha da comparação entre os dois poetas.




CAIO VALÉRIO CATULO




Considerado um dos maiores líricos romanos, Catulo (Caius Valerius Catullus _ 87/84? -54/52? a.C.) nasceu em Verona, uma cidadezinha da Gália Cisalpina e morreu em Roma. Pertencia a uma família nobre e rica e, compôs as suas primeiras poesias quando tinha aproximadamente dezesseis anos. Suas manifestações poéticas (uma coleção de 116 peças poéticas que chegou até nossos dias) revelam sensibilidade, versatilidade e talento.
Em Roma, Catulo se ligou a um círculo de poetas de ideais estéticos comuns. Conquistou também o desafeto de Cícero que não gostava desta escola literária e chamava, pejorativamente, de poetae noui.
Na obra poética de Catulo encontramos, primeiramente, sessenta peças de amor ou de circunstância, curtas e compostas em metros diversos. Segue-se oito longas e eruditas, inspiradas na poesia alexandrina. As quarenta e oito peças finais retomam a temática das primeiras, mas são compostas em dísticos elegíacos.
A grande musa das obras de Catulo é Lésbia, identificada por biógrafos como Clódia que era casada com Q. Cecílio Metelo Celer, governador da província Gália Cisalpina. É a ela que Catulo dedicará muitas de suas poesias, expressando amor, dor e desespero.
Segundo estudos críticos, talvez a relação amorosa do poeta tenha começado por volta de 61-60, em Verona.
Catulo rende-se totalmente aos encantos de Clódia e confia em suas promessas de amorem iucundum perpetuumque_ amor delicioso e perpétuo. Mas do que isso, ele pede aos deuses que este seja um aeternum foedus amicitiae_ um pacto recíproco de afeição.
Os poemas de Catulo mostram que durante algum tempo ele foi feliz com Clódia. Entretanto, ele percebe que sua amada tem uma visão de amor diferente da sua. Ela não estimava essa afeição sufocante, não poderia manter-se fiel pois era uma mulher de coração livre.
Quanto mais evidentes são as infidelidades de Clódia, mais notórios são os conflitos emocionais e poéticos de Catulo. Além disso, acontecimentos como: a morte do irmão e o abandono dos amigos, levaram o poeta a um processo reflexivo.
Finalmente sentindo que tudo havia perdido, Catulo revela em sua obra que apenas esperava pela morte enquanto sua Lésbia divertia-se com seus amantes.




FLORBELA ESPANCA




A poesia de Florbela Espanca (8 de dezembro de 1894 - 8 de dezembro de 1930) já foi vista como bíblia de iniciação amorosa, dicionário das vicissitudes da mulher e livro-de-horas de dor. A poetisa portuguesa de Alentejo, embora por toda sua vida tenha constado em seu registro como “filha ilegítima de pai incógnito”, foi criada pelo pai e pela madrasta.
Aos 9 anos escreve seu primeiro poema, “A vida e a morte”, que dedica ao pai e ao irmão, ambos foco de seu carinho constante. Em 1908, ano importante para o movimento revolucionário em Portugal, Florbela entra para o Liceu de Évora , onde sua família vai residir para acompanhar seus estudos de perto. No mesmo ano, morre Antônia Conceição Lobo, mãe biológica da poetisa.
Em 1913, Florbela casa-se pela primeira vez com Alberto de Jesus Silva Moutinho, que fora seu colega de classe desde o curso primário.
Em outubro de 1916, Florbela entra para a Faculdade de Direito, sendo uma das 14 mulheres em uma turma de 347 alunos. Neste mesmo ano, constam-se as primeiras tentativas de publicação de seus poemas.
Em 1919, a poetisa publica o Livro de Mágoas. Dois anos depois, divorcia-se do seu primeiro marido, casando-se, dois meses depois, com o alferes de artilharia da Guarda Republicana, Antônio José Marques Guimarães.
Antonio Guimarães divorcia-se de Florbela em 1925. Anos depois, ele funda a agência de “Recortes”, especializada em enviar para os respectivos autores qualquer nota ou artigo publicado sobre eles, onde concentra-se o mais abundante material que se publicou sobre Florbela de 1945 até 1981.
Ainda em 1925, a poetisa casa-se com o médico Mário Pereira Lage.
No ano de 1927, Florbela passa a colaborar com um jornal de Vila Viçosa utilizando poemas que, mais tarde, comporão o Charneca em Flor. Também inicia o trabalho como tradutora de romances franceses. Esse ano é trágico para Florbela, pois após a morte da noiva, seu irmão suicida-se.
Após a tragédia, a poetisa reage dedicando-se à produção de um livro de contos que dedica ao irmão. Após continue a seguir o curso de sua vida normalmente, depois do ocorrido, ela diz-se quase sempre deprimida, passa a fumar em excesso e emagrece sensivelmente.
Inicia a colaboração na revista Portugal Feminino, na Civilização e no Primeiro de Janeiro em 1930, junto com outras intelectuais e feministas.
Em 2 de dezembro de 1930, Florbela d’ Alma da Conceição Espanca encerra seu diário dizendo “e não haver gestos novos nem palavras novas!”. Na passagem do dia 7 para o dia 8 de dezembro, ela suicida-se ingerindo uma dose excessiva de Veronal (remédio que permitia-lhe dormir).




CATULO E FLORBELA _ OS DOIS LADOS DA MOEDA










Amar!

Florbela Espanca

Eu quero amar, amar perdidamente
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar!  Amar!  E não amar ninguém!

Recordar?  Esquecer?  Indiferente!...
Prender ou desprender?  É mal?  É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...





109

Minha vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.



(1-6, Catulo)


Florbela afirma que é impossível amar à mesma pessoa durante toda a vida. Então, segundo conclui, é preciso amar; amar intensamente e não amar à ninguém. Catulo fala de um amor eterno, pede aos deuses que permitam que haja sinceridade nas palavras de sua amada.
Diferentes concepções de amor. Diferentes faces de um mesmo sentimento. Catulo provavelmente condenaria os versos de Florbela que parecem expressar sentimentos semelhantes ao de sua Lésbia. Em resposta, Florbela diria a Catulo que ele não a compreende e desconhece o verdadeiro significado do amor.
Embora representem lados opostos, Catulo e Florbela Espanca pertencem à mesma moeda: a poesia lírica amorosa. Seus poemas apresentam uma temática particular, uma expressão subjetiva. Encontramos, nos sonetos de Florbela, aspectos que tiveram suas origens na época de Catulo, tais como: a estrofação, a métrica regular e variada, os recursos sonoros próprios para a memorização. Ambos expõem problemáticas existenciais na poesia. Angústias, decepções, desvalorização, tristezas, mágoas, enfim; expressam os conflitos internos em que vivem.
Catulo foi um poeta elegíaco e Florbela foi criticada por seu “exagerado subjetivismo elegíaco”, seu “egocentrismo por vezes fatigante”. Florbela utiliza um “ “eu” emissor que desloca a tenção sobre si mesmo e atrai para si o mundo ao redor. O amor, por sua parte, é valorizado sobretudo segundo a dor que acarreta, e o receio da solidão, o medo da rejeição, o uso da indiferença na relação amorosa, a propensão para o funéreo”.
Florbela e Catulo por vezes apresentam as mesmas ideias em seus poemas. Um exemplo é o paradoxismo presente no poema 85 de Catulo que pode ser comparado ao soneto “Confissão” da poetisa:





Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"
Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.


(Catulo)







Confissão




Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa,
Como em doirada taça algum amargo fel.

Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.

Desprezo-te também. Quando te ris e falas,
Eu fico-me a pensar no mal que tu calas
Dizendo que me queres em íntimo fervor!

Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh’alma
Confessa-to a rir, muito serena e calma!
……………………………………………………..
Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!…






Além da expressão do amor através do paradoxo odi e amo, Catulo utiliza, no segundo verso, a palavra excrucior que significa “submeter ao castigo da cruz”, pena que era utilizada apenas para escravos, demonstrando como se sentia atormentado. Florbela se expressa de forma também paradoxal ao revelar odiar, mas ainda assim, amar alguém que tem “qualquer cousa de pérfido e cruel”.
Outra interessante coincidência está na manifestação poética de Florbela Espanca e Catulo após a morte de um irmão:





68




(eu, mísero), ah irmão!, de mim roubado,
tu, irmão, ao morrer, partiste minha calma,
contigo nossa casa está enterrada,
contigo foi-se embora, vã, nossa alegria
que em vida teu gentil amor nutria.


(20-24)





In memoriam

Ao meu morto querido




Na cidade de Assis, Il Poverello
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!

“Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água…”
Ah! Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa.
Batida por furiosos vendavais!
- Eu fui na vida a irmã de um só irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!






Em ambos os poetas, questiona-se o fato de serem essas expressões resultantes de experiência pessoal ou não. Entretanto,essa é a questão que menos importa. A característica principal nas obras de Catulo e Florbela Espanca é a paixão e sensibilidade poéticas.