segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Café e cigarros

Não compreendo o que mudou. Diga-me que parte nossa se inundou. É sempre mau tempo quando estás tão distante. Agora é tudo diferente. É tudo silente. A vida segue como um cigarro aceso ao lado de um ex-fumante. Como o convite para um café do ex-amante. Como o wisky na estante. A corda do teu violão partida. A minha carta nunca lida. Teu telefonema ignorado. Tua mensagem oculta no meu livro fechado. Nosso caso é o resultado de uma insónia coletiva dos deuses. Acaso haverá maior tentação do que a dúvida? Dúvida, dádiva, dívida: tantos erros! Mas contra vontades, perspectivas e diagnósticos nossa tragicomédia continua a ser escrita. O mar afogou-nos. Inundou-se o nosso lar. Muitas águas movem o nosso manuscrito de um lado ao outro. Mas, de repente, a corda do teu violão se parte e o meu livro se fecha. Tu lês minha carta. Eu atendo teu telefonema. E do cigarro aceso ao lado faz-se o convite para um café. E o frio se vai. A chuva se esmaece. E não entendo porque nossa história nunca muda. Somos vítimas do silêncio das pedras. Filhos do oceano que nos separa.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Entre frascos e bagagens

Nos meus lábios oclusões violentam os ouvidos teus. Coisas que só se vê quando os olhos se fecham. Olhos ateus. Os olhos são teus. A porta sempre se fecha no fim do dia. As feridas se abrem no fim da linha. Abrir e fechar. Fechar e abrir. Vivo em terra aonde até os fracos tem vez. Os fracos e seus frascos. Os frascos fechados. Meus frascos abertos. O pulsar já tão distante quanto a lua. A lua. Nua, desdobro-me. Redobro-me. Recordo-me. O corpo é agora pretérito mais-que-perfeito. A alma sempre fora o imperfeito. Abandono-me pela minha incapacidade em abraçar-te. A bagagem. A bagagem dobrou de volume. A bagagem tem mais vida que queixume. Fiz do meu abandono um reencontro. Reencontrei. Reconheci minha face no espelho. Para cada vírgula no meu caminho, imaginei um segredo cifrado. E todas as minhas esfinges não passavam de enganos interpretativos. Olhei meus olhos no espelho. Já não faz sempre mau tempo. Quantas tempestades tu roubaste do meu peito? Em tempo de recomeços, recomeço minha história da ponta ocre perdida no caderno escondido na mala cinzenta guardada debaixo da cama. Um dia tudo era precipício. No outro, tudo foi precipitação. Será que descobrimos um novo capítulo nos manuscritos do nosso autor? Em tempo de reencontros, reencontro uma parte perdida daquilo que hei-de ser. Deixo os frascos para os fracos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O nome

O nome gritado da lama. Loucura é ópio, incenso, pena e perfume. Transgridem meus olhos e perdem os céus. Os seus. Seu nome. Um nome é fome de sentido. Nome se rende abstracto. Nome anti-libertação. É medo de tocar os céus. Em transe reencontro a que fui quando não era. Em êxtase encontro o nome que era meu e desaprendi a dizer. Corro para lembrar das minhas asas. Fujo para ser encontrada pela outra face da imagem que perdi. Espelho. Projeto no outro o outro que sou, que fui, que queria ser. Todo amor é uma projecção. Toda imaginação é uma lembrança de uma coisa outra que era. É o nome lembrado e cuspido na lama.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Dos monges

Sub-amores olham através das janelas com cortinas entreabertas seu copo de veneno cotidiano passar. Venta. O chapéu que voa solto pelo ar conhece mais histórias sobre vontades entardecidas do que pensávamos. Mato-me mais uma vez para dar sentido à existência. Não aprendi nada no espelho das lamentações. Eiras e beiras continuam perdidas na gaveta da antiga escrivaninha. Não lembro onde começa a história. Línguas se apressam a falar do que não sabem. Uma moeda por teu silêncio! Uma moeda por teu silêncio! É pecado por a culpa no pecado. Não confio em quem me tenta roubar a liberdade. Fragmentos de vento contam suas memórias às janelas abertas. Não sei como se comportam as paisagens. Não suplico por folhas caídas. Cada vela apagada é um livro terminado. O cheiro do eco das manhãs continua a atrair olhares complacentes. Deixo que teu castigo seja a minha indulgência. O sino não fez das pedras mudas. Um corpo sem marcas é um espírito sem vida. Não há verdade em quem tem medo do fogo. Palavras frívolas são como mantras que fazem minha mente viajar para outros universos. Sete arranhões cicatrizados antes do vento apagar a última vela. Nada é tão cataclísmico depois de uma noite de sono. Bons sonhos! Que o santo ventre da terra te seja acolhedor!

sexta-feira, 22 de março de 2013

Sutiã na cabeça

Era terça-feira torta como toda terça-feira torta logo após segunda-feira insana. Acordei. Abri os olhos. Uma borboleta do tamanho de uma vaca estava entalada na minha janela. Abri os olhos. Ainda estava lá. A vil criatura olhava-me com seus enormes olhos famintos. Olhei a porta. Num pulo pus-me para fora da cama. Fugi do quarto. Corri para a cozinha a pensar que meu mal fosse talvez falta de café. Para meu espanto, um dragão chinês cozinhava e, muito educadamente, convidou-me para sentar e apreciar a nova receita de bananas flambadas com canela que criara. Apesar do susto, comi. A cara era muito boa e adoro tudo que leva canela. Depois de comer, calculei que um banho de água fria resolveria o meu caso. Ledo engano! No banheiro encontrei cinco anões azuis tocando rock com seus cavaquinhos."Ó, Zeus, esta casa está amaldiçoada", pensei. O jeito foi correr à rua para respirar ar puro. Péssima decisão! Em frente a minha casa ocorria uma parada de cachorros falantes com plumas de ganso a sair-lhes pelas orelhas. "Só tem uma solução", pensei. "Vou à delegacia. Lá algo devem fazer." Ideia ruim, ideia sem jeito! Encontrei policiais vestidos de Village People cantando fado, enquanto Leonardo da Vinci tatuava Monalisa na sua nádega esquerda. "Não há jeito. Preciso de um médico!". Tomei um táxi para o hospital. Um macaco cor-de-rosa guiava o carro, mas o que é uma cerveja pra quem já está completamente ébrio? "Um médico, por favor! Um médico!", gritei hospital adentro. Caetano Veloso atendeu-me com um uniforme de enfermeira dos anos 50 e confesso que achei que lhe caiu até muito bem. "Preciso de um psiquiatra", disse-lhe. Em poucos minutos estava eu diante de uma orquídea com um lindo vestido amarelo e sorriso branco que perguntava-me: "Que houve, minha querida?" "Acho que enlouqueci. Estou a ver coisas que não podem existir." "E quem diz o que pode ou não existir? Isto e caso de poesia, minha filha." Voltei para casa querendo minha mãe, minha cama e fazer manha. Que dia mais insano! Que terça mais maluca! Mas que é que é insano, afinal? Deixa o caos reinar que isto é casa de escritora.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Precipício

Estes silêncios insondáveis são teu vício. Meu precipício. Penduro minhas asas à janela e caminho para fora do paraíso. Tuas palavras são só resquícios de mil conversas inventadas. Conversas entardecidas. A lua minguou, meu bem. Os cigarros voltaram para a mesa e esperança retornou à gaveta. A memória da pele tem sangue nas mãos. A memória dos sentidos repeliu as tuas palavras. A memória dos encontros esqueceu-se do teu calor. “Pula”, dizem as vozes e permaneço com meus pés presos ao chão. Ó, céus, por que reinvento-te toda vez que morre um pedaço meu? Nunca fomos mais do que histórias antigas recontadas. Rememorar-te é minha covardia cotidiana. A lua é só um arco no céu. Estou só. O silêncio comeu todos os meus afetos. Minhas páginas estão a apagar-se. Reinventemos o dia já que a noite escura nunca finda. Minhas palavras derramadas combinam com teu signo indecifrável. A minha fonte é seca. Minhas raízes estão fracas. Minhas folhas estão a cair. O precipício grita o meu nome. Falta tanto tempo para a lua cheia! Meu tronco já não pode resistir. Estou tão cansada de coleccionar descaminhos! Só as palavras fazem meu coração palpitar. Amo-te porque és a minha mais bela reinvenção. Meu copo de veneno. A lua guia meus passos ao precipício. E precipito-me em teu silêncio inventado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Outros pecados

Recomeça a vida toda vez que piscam os olhos. E em cada recomeço faz-se céus e terra. O dia durou mais do que deveria. Os meus dias são longos quando tão separados dos teus. Os teus. Ateus dançam agora no nosso esquecido Jardim do Éden. Quiseste provar as delícias do fruto proibido nos meus lábios. Meu pecado teve gosto de desconhecimento. Depois de pecar perdemos o dom de enxergar. Não reconheço mais teu rosto. Vejo um, vejo dez, vejo cem. Todos os rostos que vejo são iguais. Sinto falta de um tempo onde eu cria ser teu rosto diferente de todos os outros rostos. Abel ou Caim? Não sei. Nunca soube. O dilúvio apagou teu perfume das minhas narinas. Castigo para amante de nefilins. As águas apagaram minha existência. Sempre estrangeira em terra distante. Não pertenço à nenhuma das doze tribos. Na tua casa não entrei porque meus muitos deuses ofendem-te. Queres-me. Persegue-me. Não entendo. Não entendo! A carne que beijas à noite, quando dia, queimas em praça pública. Um filho do teu Deus salvou-me do apedrejamento, mas teu olhar continua a condenar-me. Teus olhos crucificam-me. Mesmo depois de por serapilheira, raspar minha cabeça e receber nome cristão, tu pensaste em mim como indigna de ti. “O cão volta ao seu vómito”. Recito teu Livro Sagrado e volto aos meus deuses que nunca abandonaram-me. Recomeça a vida toda vez que piscam os olhos. Que haja a luz!

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Ruínas

Quanto tempo faz que nosso tempo se desfaz? Os tempos não voltam jamais. Não foram sete tempos e meio como na profecia, mas também estamos em ruínas. Nossas muralhas fortificadas são hoje só pó da grande civilização que fomos. O Livro Sagrado não conta a nossa história. Não fomos heróis. Deixamos o amor morrer. Fugimos da guerra por medo da morte e veja só, meu bem, morremos. A culpa foi mais minha que tua. Preferi ver-te transformado em covarde do que queimado em praça pública. E a vergonha fez com que fugisses de mim. A vida é uma faca de dois gumes. Agora sou só algumas pedras, resquício da muralha que um dia fui. Vejo homens subirem em minhas costas e narrarem as histórias que desconhecem sobre nós. Não estamos no Livro Sagrado. Não fomos perversos. Mesmo quando tentamos ser maus, algum amor nos salvou da perdição. E a todos os nossos pecados pagamos. Eu senti o calor da fogueira até virar cinzas. Hoje o céu está cinza. Tudo está cinza. O Livro Sagrado esqueceu-se de nós. Não somos santos. Das nossas mãos ainda goteja o sangue dos inocentes que cruzaram o nosso caminho. Todo mundo é culpado. Todo mundo é inocente. O tempo revela as nossas culpas. O tempo perdoa nossas falhas. Não temos mais tempo. O fogo volta a consumir nossas arruinadas fortificações. Desafiamos aos deuses e eles nunca nos perdoaram. Não perdoarão.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Naufrágio de palavras

Ouço o som do vento lá fora. Ouço o silêncio do tempo cá dentro. Todas as tuas vozes mentem. Ouço-as todas. O vento agita as páginas de um velho livro pousado à janela. O livro mente amores. Esses tais amores que tantas bocas cantam à cada esquina. E cada poeta que canta seus feitos canta com tanta propriedade que sinto cada vez mais vetado a mim o uso do vocábulo. Ouço o som do vacilo das tuas pernas ao caminhar em minha direcção. Tu não vens. Não sei se o fogo ardeu sem ser visto. Não sei. Nunca saberei. Teus dedos mentem quando pegas a pena? Com a pena não mentes. Todas as tuas invenções são tão reais quanto o vento que agora carrega os pedaços do que um dia foi uma carta dirigida a ti. Eu menti. Menti meu desamor. Não reparaste que em momento algum meus olhos tocaram os teus? Não, tu não reparaste. Não reparas em mim. O vento traz folhas do fim do outono. Nenhum outono vence o inverno. Mesmo teus invernos foram-me verões. Mas as naus continuam a seguir mesmo sem ti. Teu barco permanece ancorado mesmo que mintas a ti o contrário. Estendo minhas velas ao vento. Sempre. O vento leva-me ao meu destino. Os ventos rasgam o silêncio que não quis se calar. Queria que soubesses calar nossos subjuntivos. Tu não o fizeste. Em vez disso, pôs ponto final em nossas orações. Culpamos o mar. Culpaste o tempo. Culpo o medo. Minhas velas incertas guiadas por ventos passageiros puseram medo ao coração do marinheiro. Meu barco precisa do vento. O vento que nos afasta e leva tuas palavras ao fundo do mar. E ouço o vento calar as tuas vozes.